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A natureza contratual do plano de recuperação judicial e os impactos da pandemia da Covid-19

Carolina Maciel Cordeiro

 

A pandemia da Covid-19 ocasionou diversas alterações na dinâmica político, social e financeira dos países. No Brasil, em razão da declaração de estado de calamidade pública (Portaria n. 188 do Ministério da Saúde) e de estado de transmissão comunitária da Covid-19 em todo o território nacional (Portaria n. 454 do Ministério da Saúde), foi publicada a Lei n. 13.979/2020 estabelecendo diretrizes para o enfrentamento da emergência de saúde pública.

Dentre as medidas para a contenção da transmissão comunitária, estabeleceu-se a quarentena definida pela “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus” (art. 2º, inciso II).

Com a decretação da quarentena em diversos estados do território nacional, foram paralisadas as atividades de inúmeros setores da economia, ocasionando a alteração na dinâmica econômico-financeira e, consequentemente, impactou na simetria das relações contratuais pré-existentes.

No âmbito dos contratos empresariais, as alterações têm sido objeto de discussões judiciais que perpassam desde a possibilidade de reconhecimento da onerosidade excessiva para a revisão, até a resolução contratual.

Adentrando especificamente no procedimento de recuperação judicial, impõe-se a análise dos impactos da pandemia da Covid-19 no plano de recuperação, considerando a recuperação judicial como “uma oferta de contrato pelo devedor aos seus credores, sendo tal negócio jurídico fiscalizado e vinculado à atuação jurisdicional, uma vez que compete ao Estado verificar se o devedor atende às exigências legais para propor o contrato e, ao final, homologar o negócio jurídico para que este tenha validade e eficácia [1]”.

O plano de recuperação judicial, para fins da presente análise, será considerado como negócio jurídico de direito privado submetido à homologação judicial [2], sendo, portanto, um contrato atípico firmado entre devedor e credores sujeitos ao procedimento de recuperação judicial.

Assim como nos contratos em geral, em situações excepcionais, é possível que haja intervenção estatal para promover o reestabelecimento da simetria das relações contratuais, a partir, por exemplo, da revisão das obrigações e, em último caso, até determinar a sua resolução.

Por ser um contrato atípico, o plano de recuperação judicial também pode sofrer interferência estatal, sendo, no entanto, limitada à análise sobre a legalidade de suas cláusulas e previsões [3].

Realizado o controle de legalidade dos planos de recuperação judicial pelo Judiciário [4], se tratando de negócio jurídico de direito privado, aplicam-se as disposições do Código Civil no que tange à invalidade do negócio jurídico.

Feitos estes importantes esclarecimentos sobre a natureza jurídica do procedimento e do plano de recuperação judicial, destaca-se que, diferentemente dos demais contratos, o descumprimento pelo devedor de uma das obrigações previstas no plano durante o período de fiscalização de dois anos, acarreta a convolação da recuperação judicial em falência, nos termos do artigo 73 da Lei 11.101/2005 [5].

Todavia, em razão da pandemia da Covid-19 e da decretação de quarentena em âmbito nacional, esta disposição legal tem sido mitigada pelos tribunais, aplicando-se as previsões sobre a onerosidade excessiva dos contratos em decorrência de força maior [6].

Neste sentido, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu a Recomendação n. 63 de 31 de março de 2020 [7], orientando os juízos com competência para julgamento de ações de recuperação judicial e falência a relativizarem o descumprimento de obrigações do plano como causa de decretação da falência, uma vez decorrentes das medidas de distanciamento social e de quarentena (força maior).

Há ainda a recomendação para permitir à devedora apresentar plano modificativo, mediante comprovação de adimplemento das obrigações assumidas no plano anteriormente ao dia 20/03/2020 e de redução da capacidade de cumprimento das obrigações assumidas (onerosidade excessiva).

Em consonância às mudanças ocasionadas pela pandemia da Covid-19, foi proposto um projeto de Lei que visa a modificação da Lei 11.101/2005, prevendo, dentre outras questões, a suspensão de todas as ações judiciais de natureza executiva que discutam obrigações vencidas após 20/03/2020, privilegiando a renegociação extrajudicial e direta [8].

Evidencia-se, portanto que, em caso de recuperação judicial, têm sido aplicadas a teoria da imprevisão e a configuração de onerosidade excessiva em razão da força maior ocasionada pela pandemia da Covid-19 para fins de manutenção da relação contratual (plano de recuperação judicial), transferindo às partes a faculdade de renegociarem os termos anteriormente pactuados, respeitando a autonomia privada própria dos contratos.

Neste contexto, conclui-se pela possibilidade de, em razão de outros acontecimentos necessários e imprevisíveis, as partes se valerem destes precedentes para estabelecerem novos parâmetros legais para a modificação do plano de recuperação judicial, mitigando a aplicação automática da convolação da recuperação judicial em falência (art. 73, IV, da Lei 11.101/05).

 

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[1] LIMA, Eduardo de Carvalho. O objetivo da recuperação judicial como oportunidade de superação da crise: uma análise técnica a partir do direito processual e da teoria dos perfis da empresa. Nova Lima: Faculdade de Direito Milton Campos / FDMC, 2018. p. 29.

[2] Neste sentido leciona Vinicius José Marques Gontijo: “Portanto, há uma oferta contratual pelo devedor aos credores, mediante uma declaração de aptidão econômica e promessa ao Estado-Juiz, que avalia os requisitos e impedimentos da pretensão, assim, o devedor requer uma execução coletiva a fim de superar o estado de crise econômico-financeira. De fato, quando o juiz defere o processamento da recuperação judicial, ele está, por autorização legal (art. 52, LF), adiantando a eficácia do negócio jurídico a ser proposto pelo devedor e, via de consequência, suspendendo as ações e execuções individuais contra ele”. (GONTIJO, Vinícius. J. M. A natureza de jurisdição voluntária da recuperação judicial de empresas. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos, v. 28, p. 1-11, 2014, p. 7)

[3] Sobre o tema de intervenção do Judiciário no controle da legalidade dos planos de recuperação judicial, o Colendo Superior Tribunal de Justiça apresentou um parecer publicado na Edição n. 37: Recuperação Judicial II de sua “Jurisprudências em Teses” em que dispõe sobre: “Embora o juiz não possa analisar os aspectos da viabilidade econômica da empresa, tem ele o dever de velar pela legalidade do plano de recuperação judicial, de modo a evitar que os credores aprovem pontos que estejam em desacordo com as normas legais”.

[4] Entendimento exarado nos termos dos Enunciados 44 e 46 da I Jornada de Direito Comercial CJF/STJ, a saber: 44: “A homologação de plano de recuperação judicial aprovado pelos credores está sujeita ao controle de legalidade“; e 46: “Não compete ao juiz deixar de conceder a recuperação judicial ou de homologar a extrajudicial com fundamento na análise econômico-financeira do plano de recuperação aprovado pelos credores“.

[5] Art. 73. O juiz decretará a falência durante o processo de recuperação judicial: I – por deliberação da assembléia-geral de credores, na forma do art. 42 desta Lei; II – pela não apresentação, pelo devedor, do plano de recuperação no prazo do art. 53 desta Lei; III – quando houver sido rejeitado o plano de recuperação, nos termos do § 4º do art. 56 desta Lei; IV – por descumprimento de qualquer obrigação assumida no plano de recuperação, na forma do § 1º do art. 61 desta Lei.

[6] Seguindo as recomendações quanto a relativização da aplicabilidade do art. 73, inciso IV, da Lei 11.101/2005, o Juízo da 8ª Vara Cível de São Bernardo do Campo/SP, processo n. 1024091-12.2014.8.26.0564, proferiu decisão determinando a suspensão do pagamento de todos os créditos até o dia 10 de julho de 2020, nos seguintes termos: “Em suma, é evidente a ocorrência de força maior (pandemia COVID-19), que exige relativização episódica do plano de recuperação judicial, para viabilizar a superação da crise econômica-financeira decorrente da COVID-19, mantendo-se, a um só tempo, a fonte produtora, os emprego de trabalhadores e os interesse de credores. Suspendo, portanto, o pagamento dos créditos, todos eles (isonomia), e não apenas os inscritos nas classes III e IV, até o dia 10 de julho de 2020. Preserva-se a empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, reequilibrando-se à relação obrigacional constituída no plano de recuperação judicial, que mantenho hígido”.

[7] Neste sentido, o Conselho Nacional de Justiça elaborou a Recomendação 63 de 31/03/2020 que em seu art. 4º dispõe: Recomendar a todos os Juízos com competência para o julgamento de ações de recuperação empresarial e falência que podem autorizar a devedora que esteja em fase de cumprimento do plano aprovado pelos credores a apresentar plano modificativo a ser submetido novamente à Assembleia Geral de Credores, em prazo razoável, desde que comprove que sua capacidade de cumprimento das obrigações foi diminuída pela crise decorrente da pandemia de Covid-19 e desde que estivesse adimplindo com as obrigações assumidas no plano vigente até 20 de março de 2020. Parágrafo único. Considerando que o descumprimento pela devedora das obrigações assumidas no plano de recuperação pode ser decorrente das medidas de distanciamento social e de quarentena impostas pelas autoridades públicas para o combate à pandemia de Covid-19, recomenda-se aos Juízos que considerem a ocorrência de força maior ou de caso fortuito para relativizar a aplicação do art. 73, inc. IV, da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.

[8] Projeto de Lei 1.397/2020. Institui medidas de caráter emergencial mediante alterações, de caráter transitório, de dispositivos da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005; que somente terão vigência até 31 de dezembro de 2020, ou enquanto estiver vigente o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020 (Reconhecimento do estado de calamidade pública em razão da pandemia causada pelo covid-19); e dá outras providências.

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Lei 11.101/05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Brasília: DF, fevereiro de 2005.

BRASIL. Lei 13.979/2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.

BRASIL. Portaria n. 188 de 03/02/2020. Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV).

BRASIL. Portaria n. 454 de 20/03/2020. Declara, em todo o território nacional, o estado de transmissão comunitária do coronavírus (covid-19).

BRASIL. Projeto de Lei n. 1.397/2020. Institui medidas de caráter emergencial mediante alterações, de caráter transitório, de dispositivos da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Brasília: DF, março de 2020ª

BRASIL. Recomendação n. 63. Recomenda aos Juízos com competência para o julgamento de ações de recuperação empresarial e falência a adoção de medidas para a mitigação do impacto decorrente das medidas de combate à contaminação pelo novo coronavírus causador da Covid-19. DJe/CNJ nº 89/2020, em 31/03/2020, p. 2-3.

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Recuperação Judicial n. 1024091-12.2014.8.26.0564, Juiz Gustavo Dall’Olio, Órgão Julgador: 8ª Vara Cível, Foro de São Bernardo do Campo/SP, Data de Registro: 06/04/2020.

BRASIL. Edição n. 37: Recuperação Judicial II, “Jurisprudência em tese”. Superior Tribunal de Justiça, Data da Publicação: 30/04/2015.

GONTIJO, Vinícius. J. M. A natureza de jurisdição voluntária da recuperação judicial de empresas. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos, v. 28, p. 1-11, 2014, p. 7

LIMA, Eduardo de Carvalho. O objetivo da recuperação judicial como oportunidade de superação da crise: uma análise técnica a partir do direito processual e da teoria dos perfis da empresa. Nova Lima: Faculdade de Direito Milton Campos / FDMC, 2018. p. 29.

ROSADO, Ruy; NETO, Alfredo de Assis Gonçalves; FRAZÃO, Ana; COELHO, Fábio Ulhôa; SANTOS, Paulo Penalva. I Jornada de Direito Comercial. Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2013.

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