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O direito de arrependimento consumerista durante o período da pandemia do coronavírus (Covid-19)

O mundo inteiro enfrenta, desde janeiro de 2020, uma intensa crise sem precedentes na história. Apesar das pregressas pandemias que acometeram a humanidade até então, o Sars-CoV-2 (Corona Vírus) nos desafia em uma realidade extremamente conectada e globalizada, na qual, quase em um lance só, atinge a todos simultaneamente. Não bastassem as inúmeras perdas humanas e as consequências à saúde pública – suficientemente trágicas – os impactos reverberam-se para todas as esferas antropológicas.

O presente artigo visa ao aprofundamento das relações jurídico-econômico-consumeristas que se viram abaladas no Brasil, especificamente na vigência da Lei 14.010/2020 de 10/06/2020 a 30/10/2020. Apesar de encerrado prazo de vigência, os seus impactos são presentes. Desta forma, o que se objetiva é a orientação daqueles lesados durante este período e, não menos importante, servir, de alguma forma, enquanto contribuição para as discussões jurisprudenciais e doutrinárias que inevitavelmente desabrocharão nos próximos meses e anos.

Afinal, o que é o Direito de Arrependimento?

Para a correta compreensão do que este dispositivo legal se trata é essencial, anteriormente, entender o “por quê” de seu surgimento. O pressuposto básico é de que o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) é lei fundamental para equilíbrio das relações jurídico-econômicas entre cidadãos e empresas. Entenda-se.

Todos aqueles que oferecem serviços e produtos ao mercado, principalmente por meio de relações de compra e venda, estão, essencialmente, em busca do lucro. Sendo assim, e exatamente por este motivo, têm inquestionável importância no desenvolvimento financeiro da sociedade como um todo. Todavia, com todo bônus, acompanha-se ônus.   Primeiramente, este modelo econômico, fundado na redução dos gastos e maximização dos proveitos, empenha-se na atração do público, muito eficazmente, para o consumo – podendo agir, inclusive, por meio de ludibriações para tanto. Em outro aspecto, aprofunda-se a discrepância entre a capacidade econômica das instituições privadas e da população em geral. Destes inquestionáveis – e naturais – desequilíbrios, surgem a regulação, regulamentação e limitação.  As leis de defesa ao consumidor, de regulação publicitária, etc. tratam-se, portanto, de formas não a privilegiar os consumidores ou embaraçar os fornecedores, mas sim trazer igualdade material à relação jurídica.

Dessa forma, assim dispõe o CDC:

“Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.”

Como pode-se observar, o art. 49 traz o Direito de Arrependimento, enquanto, em uma leitura literal, a possibilidade do consumidor desistir imotivadamente, no prazo de 7 dias, do produto ou serviço adquirido fora das dependências comerciais, restituindo-lhe o valor empregado. Atenta-se. Têm-se os 3 principais requisitos desta garantia:

1 – Contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento: Vez que o consumidor está fora das dependências comerciais do fornecedor, não tem contato direto com o bem desejado, impossibilitado de realizar análise e inspeção deste. Novamente, portanto, o direito consumerista pressupõe o desequilíbrio entre a capacidade atrativa e de convencimento dentre fornecedor e as limitações do consumidor. Mais adiante, por sua vez, o dispositivo terá avanços doutrinários e jurisprudências, trazendo a facticidade necessária para a lei. Principalmente diante do crescimento exponencial da virtualização do consumo.

2 – Ausência de contato imediato com o produto: Trata-se de consequência lógica do requisito anterior. Todavia, merece ser destacado, vez que esta é, em essência, a verdadeira ratio legis. Doutra maneira, ainda é possível que o consumo fora das dependências comerciais não altere a capacidade de apreciação cuidadosa e atenta do bem fornecido, pelo consumidor.

3 – Imotivação: Esta previsão não é absoluta, vez que o consumidor não pode se beneficiar de sua própria torpeza. Assim, não será admitido, por exemplo, o repetido e insistente requerimento de restituição de um mesmo produto e/ou serviço. Da mesma forma, quando o consumo mediato não se diferencia daquele praticado in loco. Contudo, a imotivação é a regra, de forma que o vício ou o inadimplemento da obrigação contratada não são aplicáveis à regra, vez que a restituição se faz de forma motivada.

Todos estes requisitos são essenciais para que se entenda, finalmente, as limitações da suspensão do direito de arrependimento e não se pratiquem abusos pelas empresas durante este período de complexidade social. Trataremos deste ponto a seguir.

A suspensão do Direito de Arrependimento no período da pandemia do coronavírus (Covid-19)

Durante este complexo período de pandemia em que todas as relações jurídicas e comerciais foram profundamente abaladas e modificadas, essencial foi a revisão e atualização, pelos Poderes constituídos, das leis e os tratamentos a elas dadas.

A Lei 14.010/2020, dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19).  Desta forma, surge como uma das tentativas de busca para contenção dos prováveis e futuros conflitos que surgiriam durante este período. Especificamente, atentem-se para o art. 8º da referida Lei. Veja-se:

“Art. 8º Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos.”

Pois bem. Primeiramente há de se notar que não há uma supressão em absoluto do art. 49 do CDC, mas sim em função de casos e condições específicos. Quais sejam: entrega por delivery; de produtos perecíveis; de produtos de consumo imediato; e de medicamentos. A problemática de tal suspensão se apresenta, de antemão, ao se observar que, apesar de restringir claramente sobre o modo de aquisição dos produtos, o dispositivo utiliza-se de alguns termos abertos e genéricos para definir a qualidade dos bens.

E quando a suspensão não será aplicada?

Com o aprofundamento da pandemia do Sars-CoV-2, as relações de consumo muito se limitaram àquelas feitas por meios virtuais, vez que tanto lojistas quanto compradores, mantiveram-se reclusos em suas casas, na busca pelo isolamento social recomendado. Desta forma, limitar-nos-emos a análise desta modalidade de consumo.  Orientando-nos pela ordem de apresentação dos pontos neste artigo:

1 – O consumidor deve observar e a existência de vícios e defeitos nos produtos e/ou serviços. Consideremos duas situações hipotética de aquisição de um produto, por meio digital. Na primeira, o sujeito, no oitavo dia após o recebimento de um fone de ouvido, percebe que o microfone embutido não capta qualquer som. Na segunda, no terceiro dia após a entrega do fone de ouvido, o sujeito perde entrevista de emprego em função do não funcionamento do microfone embutido. Veja-se. Apesar de nenhum dos casos tratarem-se do Direito de Arrependimento em si, é imprescindível sua ponderação. Se os consumidores dos casos reclamarem, via e-mail, a devolução do produto e restituição de seu dinheiro, não podem ser ludibriados, pelos fornecedores, na manutenção da compra em função da suspensão do art. 49 do CDC, vez que não se trata de aplicação deste dispositivo. Estamos diante, portanto, de uma restituição

2 – Da mesma forma, não se aplica aos casos em que o consumidor fora induzido ao erro pelo fornecedor. Entenda-se. Muitas das vezes, os sites de apresentação dos bens e serviços não são suficientemente detalhados, ou, em algumas das vezes, deliberadamente confusos, de forma a gerar no consumidor expectativa de estar adquirindo determinada quantidade de produtos a determinado valor, ao passo que não é o que se efetiva. Se o consumidor se depara, no dia da chegada de seus produtos, que, em realidade, adquiriu 2, ao invés de 12 unidades, pode-se alegar que a vendedora não cumpriu com o dever de facilitar, ao máximo, a compreensão do conteúdo, deixando de lado o dever de informar, tal como a boa-fé objetiva e a transparência exigidas na fase pré-negocial. Trata-se aqui, também, de restituição

3 – Adentrando-se nas especificidades da Lei 14.010/2020, há de se atentar à possibilidade do consumo on-line, na qual a entrega do produto não se faz por meio de delivery, mas sim de retirada na loja pelo próprio consumidor. Sendo assim, por mais que estejam cumpridos os requisitos previstos no art. 49 do CDC, se o adquirente, até o sétimo dia da retirada do produto comprado por meio virtual, se arrepender imotivadamente da compra, poderá requerer a devolução e restituição sem maiores embaraços.

4 – A não disposição, seja no contrato, seja em etapa pré-contratual, de cláusula ou advertência sobre a presunção do consumo. Isso, pois, não se pode incumbir ao consumidor ter ciência de fato ou condição que não fora alegado anteriormente à conclusão da compra e venda. Devendo, o fornecedor do produto, portanto, prestar ao consumidor informação suficiente para que este tenha liberdade de escolha diante dos bens oferecidos no mercado, sendo o entendimento consagrado pelo art. 6º, II e III do CDC.

5 – Finalmente, o aspecto de maior complexidade e controvérsia, dada a ausência de definição legal, está na possibilidade de os produtos não serem perecíveis ou de consumo imediato. Chama-se a atenção, preliminarmente, tratarem-se de características intrínsecas ao produto, podendo ser, desta forma, presumidas a priori, independentemente de prova. Sobre o assunto, todavia, ainda é possível utilizar-se da semântica e de ampla jurisprudência enquanto compasso.

a) O bem perecível: por definição da palavra, trata-se daquele que se deteriora por si mesmo, extingue-se em prazo razoavelmente curto sem que para isso seja necessário o seu manuseio ou uso. Aproxima-se da definição, por exemplo, safras de soja, alimentos com curta data validade, ou bens que carecem de específicas formas de acondicionamento.

b) O bem de uso imediato: não se trata de característica própria do bem, mas sim mediada pelo Ou seja, o consumo deve ocorrer imediatamente, presumindo que, para o consumidor, trate-se de produto indispensável, urgente, necessário. Desta forma, assemelha-se à definição de bem durável ou não durável, conforme o STJ[1]: “ … entende-se por produto durável aquele que, como o próprio nome consigna, não se extingue pelo uso, levando certo tempo para se desgastar, que variará conforme a qualidade da mercadoria, os cuidados que lhe são emprestados pelo usuário, o grau de utilização e o meio ambiente no qual inserido. Portanto, natural que um terno, um eletrodoméstico, um automóvel ou até mesmo um livro, à evidência exemplos de produtos duráveis, se desgastem com o tempo, já que a finitude é, de certo modo, inerente a todo bem. Por outro lado, os produtos não duráveis, tais como alimentos, os remédios e combustíveis, em regra in natura, findam com o mero uso, extinguindo-se em um único ato de consumo. Assim, por consequência, nos produtos não duráveis o desgaste é imediato[…]”.

O que se conclui, portanto, é que se o consumidor recebeu produto, ainda que por delivery, mas não se pode presumir o seu consumo nem sua deterioração e/ou esgotamento automáticos, ou sequer foram retirados da embalagem e rompidos os lacres, o Direito de Arrependimento previsto no art. 49 do CDC ainda está vigente.

Conclusão

Apesar da necessidade de atualização jurídica nas relações de consumo durante o período de impactos da Corona vírus em nossa sociedade, não se pode convir com o descuido legislativo na formulação de dispositivos genéricos e abertos. Desta forma, no lugar da segurança jurídica trazida pela especificação das soluções aos conflitos enfrentados, a Lei 14.010/2020 pode trazer, em realidade, o aprofundamento do caos em que a sociedade já se encontra.

Da mesma forma, deve-se coibir, por meio da devida e justa jurisdicionalização, os fornecedores de produtos e serviços que se aproveitam das incertezas. Finalmente, o que objetiva este artigo, é a prática do dever de se alertar os consumidores dos abusos que podem ocorrer, exatamente em função da referida inespecificidade das soluções trazidas para o momento.

[1] STJ, Recurso Especial nº 1.161.941/DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Julgamento em 05/11/2013, publicado no Informativo n. 533

Rafael Fagundes

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